Imaginem a seguinte situação: em uma mesma rua se encontram um terreiro de umbanda e uma igreja pentecostal.
Em uma determinada noite fiéis da igreja pentecostal invadem uma cerimônia que
ocorre no terreiro, agridem as pessoas que se encontravam no local e destroem
as estátuas e os objetos sagrados. Tudo isso regado a gritos de que ali se
encontravam “adoradores de Satanás” e que estavam “agindo em nome de Deus”. Os
agressores são presos. Porém, na igreja pentecostal, o pastor que celebra o
culto continua se referindo em tom triunfalista aos adeptos do terreiro local
como “endemoniados”, chama os orixás e entidades de “demônios disfarçados” e
estimula uma “cruzada” contra o terreiro. É devidamente denunciado para as
autoridades, mas o pastor recorre a uma cartada: inverte a acusação de
discriminação religiosa e, com seu discurso, transforma-se de agressor para
“vítima”, acusando as autoridades de restringirem sua liberdade. Ganha o apoio de diversas outras denominações evangélicas, com
pastores televangelistas e políticos teocratas insuflando o discurso de
vitimização do pastor e dizendo que as autoridades querem uma “ditadura
umbandista”.
Essa situação é muito comum no
Brasil, embora mudem os atores. Em geral acaba não levando a lugar nenhum, com
o agressor continuando o seu discurso violento com o benefício de um tabu.
Esse tabu é a ausência de um debate sobre a liberdade religiosa no Brasil.
Considerado um valor absoluto, a sociedade brasileira teme colocá-lo em pauta até
quando a liberdade de culto ultrapassa os limites da legalidade e do bom senso. Encerrados nos templos, sacerdotes pregam o que
bem entendem, podendo passar ou uma mensagem positiva, ou uma mensagem que
possa prejudicar um determinado indivíduo ou grupo. Quando sentem seu discurso ameaçado, recorrem
ao truísmo da liberdade religiosa e da tolerância para que qualquer debate seja
encerrado.
A impressão é de que os templos
religiosos são locais onde á sociedade e o estado não encontram vez de impor
qualquer norma, sendo a única lei obedecida, e de forma muito relativa, aquela manifestada pela deidade adorada no local e de seu livro sagrado. Tal fator, combinado à facilidade de se montar novas religiões no Brasil – onde templos religiosos são
isentos de impostos por serem encarados como entidades sem fins lucrativos –
tem fomentado um poderio que fica cada vez mais forte e que se torna cada vez
mais difícil de controlar. Quando a sociedade e o estado não debatem se
uma determinada religião pode pregar sobre aquilo que bem entender, sem se
importarem se esse comportamento é negativo ou prejudicial, as religiões ficam livres para impor sua agenda ao estado - recorrendo até mesmo à eleição de bancadas parlamentares que
atendam aos seus interesses e que visem impor seus dogmas para o restante da
sociedade.
Não podemos continuar tratando a
religião e o culto como instituições intocáveis. Não são, de maneira alguma, entidades sem fins lucrativos. Cada vez mais ganham notoriedade os sacerdotes
neorricos, donos de verdadeiros impérios empresariais que não se limitam
somente ao templo, embora esse seja o primeiro e, possivelmente, o mais lucrativo
“negócio”. Também não devem ser encaradas como pilares da ética e da moral de
outrora. Apologia à intolerância, à discriminação, à destruição de culturas e religiões
diferentes e também à alienação individual são constantes em diversos templos
do país. Temos uma visão do século XVIII sobre a religião. Mas na realidade muitas religiões atuais são guiadas pela agressividade competitiva da lógica de mercado e não pela coesão social que a crença a uma divindade propõe.
Mesmo assim, continuamos com medo
de colocar a questão em pauta. O que está no templo religioso, fica no templo
religioso. Se algum determinado grupo se sentir prejudicado
pela mensagem lá passada, azar! Quando há qualquer oportunidade para se debater
sobre a questão, o debate é imediatamente desviado e distorcido para que
insufle os sentimentos dos fiéis e todos os argumentos objetivos são soterrados
por uma enxurrada de falácias. E continuaremos a não perceber que deve haver liberdade religiosa, mas que religiões não deveriam ser isentas das
responsabilidades que recaem sobre qualquer manifestação social, sendo
submetidas a um estado laico e democrático.